Os elefantes brigam
Antonio Luiz M. C. CostaA guerra cambial foi declarada entre as maiores potências. O primeiro a usar a expressão foi o ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao deixar de lado os eufemismos e dar nome aos bois em reunião na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), em 27 de setembro, dias antes de criar novas restrições à entrada de divisas estrangeiras e dirigir-se à reunião do FMI e Banco Mundial em Washington. Desde então, a expressão ganhou as manchetes da imprensa internacional e o palavreado diplomático sobre cooperação internacional para retomada do crescimento foi deixado de lado.
A frente principal dessa guerra é a batalha entre os EUA e a China. A moeda chinesa valorizou 21% de julho de 2005 a julho de 2008, quando a taxa de câmbio foi congelada por Pequim para proteger as exportações durante a crise. Desde julho de 2010, os chineses permitiram uma valorização cautelosa, mais 2% até agora. Washington insiste em que o yuan deveria valorizar entre 20% e 40%. O Congresso aprovou uma lei que permite impor sobretaxas a produtos chineses, sempre que indústrias estadunidenses se queixem de que a taxa de câmbio dá uma vantagem desleal a seus concorrentes, ameaçando acrescentar a guerra comercial à guerra cambial.
Jean-Claude Trichet e demais autoridades monetárias europeias somaram sua pressão à dos EUA.
Pequim continua a resistir com os seus consideráveis recursos. Com uma taxa de crescimento confortável (9,5% no terceiro trimestre, comparado ao mesmo período de 2009), mas inflação em alta (perto de 3,5% no ano até agosto), a China poderia controlá-la valorizando sua moeda para baixar os custos das importações, mas preferiu elevar seu juro básico de 2,25% para 2,5% em 19 de outubro, pela primeira vez desde 2007. Pode ser o início de uma série de ajustes que frearão sua taxa de crescimento e a demanda mundial de commodities, dificultando ainda mais uma recuperação global. Quando brigam os elefantes, quem mais sofre é a grama, dizem os africanos.
Apesar da crise e da retração do consumo, que deveriam colaborar para conter importações e estimular exportações, o déficit do balanço de pagamentos dos EUA voltou a crescer. De 31 bilhões de dólares, em 1991, subiu para 104 bilhões, em 1996, e explodiu para 166 bilhões, em 1998 264 bilhões, em 1999 e 379 bilhões em 2000. Caiu ligeiramente, para 364 bilhões com a crise de 2001, mas depois voltou a aumentar continuamente até o auge de 759 bilhões, em 2006. Manteve-se perto dos 700 bilhões nos anos seguintes, para despencar 46%, para 375 bilhões, em 2009 – mas caiu apenas 15% com a China e 65% com o resto do mundo. Nos primeiros oito meses de 2010, foi de 335 bilhões, que aponta para um déficit superior a 500 bilhões no ano. A China representa quase a metade desse valor.
A crise não corrigiu, portanto, os desequilíbrios comerciais. O ajuste cambial chinês resolveria? Dificilmente: dada a diferença entre salários e custos de produção nos EUA e China, uma variação de 20% no câmbio não chegaria a tornar os produtos estadunidenses acessíveis aos trabalhadores de Xangai nem os produtos chineses ficariam caros demais em Nova York.
Não é apenas a percepção dos chineses, mas também de boa parte do mercado financeiro, que o governo de Barack Obama exige o impossível. Stephen Roach, presidente do Morgan Stanley Asia, diz que ajustes pelo câmbio não funcionaram para o Japão nos anos 80, como também não têm funcionado para os EUA, apesar de esses desvalorizarem sua moeda desde 2002: seria preferível que a China ampliasse sua previdência social para estimular seus trabalhadores a consumir. Glenn Maguire, economista do Societé Générale, em Hong Kong, reconhece que os chineses não podem aceitar uma valorização tão brusca. Essa acabaria por ser igualmente prejudicial aos EUA, que abandonaram grande parte das indústrias de mão de obra intensiva, cujos produtos hoje importam do Oriente. Se deixarem de comprar dos chineses, terão de importá-los de outro lugar.
Parte do déficit de Washington com Pequim seria redistribuída entre outros países, sem que o total baixe significativamente – para países recém-industrializados, como o Vietnã, por exemplo, quebrando empresas chinesas. Criaria problemas sociais e políticos para Pequim e obrigaria migrantes a voltar para o campo, como fez notar o primeiro-ministro Wen Jiabao. Ele propõe, em vez disso, que os EUA reformem suas estruturas de investimento e poupança e retirem restrições a vendas de produtos estratégicos e de alta tecnologia para a China – tais como produtos para a indústria aeroespacial e de informática –, que têm sido endurecidas desde 2007 e caíram de 18,3% de todas as exportações estadunidenses para o país, em 2001, para apenas 6,3%, em 2008.
A Obama, por sua vez, não restam muitas alternativas. A assessoria de Nouriel Roubini reduziu para 1,5% sua projeção de crescimento do PIB dos EUA em 2011, que ainda em junho os economistas ouvidos pelo Fed estimavam entre 3,5% e 4,2% (e, oficialmente, ainda é projetado em 2,5%). O pacote de estímulo que conseguiu aprovar no início do mandato não bastou para reverter o crescimento do desemprego e não lhe resta capital político para aprovar outro. Está com as mãos atadas para promover novas medidas progressistas. Tentar ser duro com os chineses com o maior alarde possível é tudo o que pode fazer para conter o estrago para seu partido nas eleições de novembro e sustentar a governabilidade nos difíceis anos de paralisia legislativa que virão.
Mesmo ante esse quadro, ninguém pode acusar os bancos de serem pessimistas. “A situação global se deteriora satisfatoriamente”, diz o relatório de outubro do Bradesco. Segundo o economista-chefe do banco, Octavio de Barros, a estagnação internacional não sugere novas rodadas de crise sistêmica, mantém baixa a inflação e os juros mundiais e brasileiros e assim colabora para que o Brasil continue a atrair investimentos e financiamentos.
O problema é que o excesso de otimismo é, em si, uma má notícia. Atrair mais recursos do que é possível aplicar de maneira produtiva é perigoso, como descobriram os que levaram ao pé da letra o entusiasmo de analistas financeiros pelos “mercados emergentes” no início dos anos 90, pelas empresas pontocom em fins dos anos 90 ou pelos derivativos do mercado hipotecário estadunidense antes de 2008. Todo mundo parece ganhar muito enquanto a pirâmide cresce, mas, quando ela chega a seus limites e desmorona, o resultado é pobreza súbita e estagnação prolongada para quase todos, com exceção dos mais espertos e bem informados.
Em 1997-1998, quando as crises mexicana, asiática, russa e brasileira desinflaram a bolha da especulação com os países “emergentes”, o Federal Reserve, banco central dos EUA então comandado por Alan Greenspan, resgatou o fundo LTCM e inundou o mundo com dólares para a ciranda financeira continuar a girar e proporcionar rendimentos de dois dígitos. O resultado foi a bolha pontocom. Quando o estouro desta foi seguido por uma série de escândalos financeiros (dos quais o da Enron foi o mais ruidoso) e pela ansiedade após o 11 de Setembro, o Fed interveio de novo para cortar juros e inflar a bolha imobiliária, até vê-la estourar em 2008, desta vez com consequências mais sérias e duradouras.
Tentando empurrar outro ciclo com a barriga, o Fed de Ben Bernanke volta a inundar o mundo com crédito em dólares e títulos do Tesouro – a chamada flexibilização quantitativa (quantitative easing) – o que até agora, sem dúvida, tem possibilitado a Wall Street fechar seus balanços com lucro e a seus executivos voltar a embolsar bônus milionários.
O objetivo é manter as taxas baixas para permitir aos bancos dos EUA “encontrar a saída” da crise na qual meteram a si mesmos e grande parte do mundo sem promover novos pacotes de estímulo ou maiores aumentos de gastos públicos. Até porque a provável vitória dos republicanos nas eleições legislativas aumentará ainda mais a pressão para cortá-los (exceto, é claro, no que se refere às despesas militares), aumentando a necessidade de uma bolha que substitua o crescimento da economia real.
O Banco Central Europeu age de maneira semelhante, procurando proteger seus bancos da fragilidade financeira dos países do Sul da Europa, os PIIGS, ao mesmo tempo que todo o continente embarca em medidas de “austeridade” que reduzem a demanda interna, pública e privada.
O que acontece com dinheiro barato quando o setor produtivo não pode investir? Não encontrando aplicação no mercado interno, em que o consumo e o emprego seguem estagnados (nos EUA, um terço das famílias tem mais dívidas que ativos) ou tendem a cair mais ainda, dólares e euros fluem para uma nova rodada de especulação financeira no exterior, com títulos, ações e dívidas do Japão e de países periféricos, principalmente os BRIC.
Procurando minimizar suas aplicações em dólares, a China também tem comprado títulos de dívida do Japão (27,4 bilhões de dólares nos primeiros sete meses de 2010), apesar de seu baixo rendimento, o que contribui para valorizar ainda mais a moeda japonesa. O Japão respondeu à dupla pressão oferecendo recursos de vulto (355 bilhões de dólares) às suas instituições financeiras a custo praticamente nulo (0,1% ao ano). Mas assim como os EUA e a Europa, não se atreve a novos pacotes de estímulo direto ao setor produtivo, a não ser em valor simbólico (10,9 bilhões de dólares).
Considere-se, por exemplo, o Brasil: a margem de arbitragem (diferença das taxas de juro) entre os rendimentos dos títulos brasileiros de longo prazo, perto de 12%, e a dos títulos dos EUA (1%). A isso deve somar-se o ganho com a valorização do real, 37% de dezembro de 2008 (dólar a R$ 2,33, real a 43 cents) até hoje (dólar a R$ 1,69, real a 59 cents): nada menos de 66% em 22 meses, ou um rendimento médio de 32% ao ano, que pode ser multiplicado dez ou cem vezes se alavancado por meio de derivativos.
No Japão, o ganho relativo é menor, pois os rendimentos dos títulos japoneses são nulos e a variação cambial é menor (de 91,21 ienes por dólar a 81,61 no mesmo período, perto de 12%), mas o volume das operações pode ser bem maior e os riscos aparentes são menores. A maior das jogadas, naturalmente, seria a valorização da moeda chinesa.
Os bancos centrais do mundo se veem num dilema: ou permitem a entrada massiva de dólares que supervaloriza suas moedas e tornam proibitivas suas exportações, o que logo faria a bolha estourar e suas economias implodirem, ou compram títulos do Tesouro dos EUA com rendimento real nulo e valor em queda, ou tentam mudar as regras do jogo, impondo controles de capital ou recorrendo a transações em outras moedas.
No caso do governo do primeiro-ministro Naoto Kan, a resposta veio na forma de esterilização da especulação financeira por meio de compra, pelo Banco do Japão, de títulos públicos e de dívida de empresas, fundos imobiliários e outros, além de redução do juro básico do já simbólico 0,1% ao ano para “entre zero e 0,1%”. A China também procura reciclar seu excedente comercial comprando empresas no exterior, mas é restringida, principalmente nos EUA, pela pressão política contra aquisições chinesas em setores estratégicos.
No Brasil, para conter a entrada desmedida de divisas estrangeiras, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, instituiu desde 2009 uma alíquota de 2% no IOF para investimentos estrangeiros em renda fixa e ações, elevou-a para 4%, no caso de aplicações financeiras em 4 de outubro (mantidos 2% para investimentos diretos em ações e derivativos). Não foi suficiente: a entrada de dólares em outubro continuou alta e a taxa de câmbio voltou a cair. Em julho, o Brasil recebeu, em média, 67,7 milhões de dólares diários e em agosto, 54,7 milhões.
Em setembro, esse indicador saltou para 796 milhões – dos quais 368 milhões, pouco menos da metade, corresponderam à captação da Petrobras (7,7 bilhões de dólares de estrangeiros). Nos primeiros oito dias úteis após a elevação, a média permaneceu em 273 milhões (apenas 36% abaixo de setembro sem Petrobras e o quádruplo de agosto) e o dólar continuou a cair. Apesar dos protestos do mercado financeiro, que queria isentar fundos de ações, duas semanas depois o ministro da Fazenda elevou o dique – embora Arminio Fraga, em nome das bolsas, proteste e diga que um câmbio abaixo de 1,60 real “não está necessariamente errado para o País hoje”.
Além de aumentar de 4% para 6% o IOF para aplicações estrangeiras no mercado financeiro, elevou-o de 0,38% para 6% no caso de operações de câmbio para constituir garantias para derivativos (bolsas de valores, mercadorias e futuros) em dinheiro ou títulos públicos. A Tailândia agiu de maneira semelhante, estabelecendo um imposto de 15% sobre o lucro de capital e rendimentos por juros derivados de investimento estrangeiro na dívida soberana. Se também isso não funcionar, o próximo passo serão controles de capitais, que até o diretor-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, está disposto a defender em caso de “boom nos empréstimos com moeda estrangeira para tomadores de empréstimo desprotegidos”.
Se a escalada continuar nessa direção e avançar pela guerra comercial, a arquitetura econômica e financeira da era da globalização será inviabilizada, incluindo a OMC, o Banco Mundial e o próprio FMI, que hoje, na prática, está reduzido a arbitrar os problemas europeus. Há o risco de se voltar aos padrões dos anos 30 ou 50, com taxas de câmbio duais, sistemas paralelos para o comércio e as finanças e fuga das moedas usadas por especuladores internacionais. A pressão inflacionária seria, nesse caso, devolvida para os EUA e Europa.
As chances de um acordo como o do Hotel Plaza de 1985, no qual europeus e japoneses concordaram em deixar suas moedas valorizarem ante o dólar, são mínimas. O mundo tornou-se mais complicado e os interesses mais divergentes. O máximo que se pode esperar da reunião do G-20, em Seul, marcada para 11 e 12 de novembro, é uma maior clareza sobre as linhas de frente dessa guerra e as armas que cada lado se dispõe a usar.
Fonte : Carta Capital
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